NOSSAS LETRAS

Mim deixa

Por Baltazar Gonçalves | Especial para o GCN/Sampi
| Tempo de leitura: 3 min
Ilustração

Antes ter paz que razão, porque é tão difícil não dizer nada? Paz de espírito parece algodão doce. Feita de finíssimos fios doces quase invisíveis, a paz derrete na boca quando o silêncio é interrompido.

Você acaba de receber outra mensagem no whatsapp, textão sobre a última notícia urgente que todo mundo precisa saber. Por mais instantânea, chega velha no privado depois de receber dois milhões de likes no X. Se é notícia falsa ou verdadeira, como afeto ou compaixão porque essas intimidades são doces venenos, não têm relevância por mais de uma hora, quando a paz consagrada colide com algoritmos tudo de sólido evapora. “Mim deixa”, foi a resposta dele, e eu tinha dito apenas bom dia pro filho da mãe, querendo puxar assunto sobre o dia das mães.

Desde que nos conhecemos, foram três meses até esta véspera do dia das mães. Tudo on line, nada real? Que nada, tudo é real. A humanidade já ultraou o limite de negar como real o que se a no virtual. Se alguém é levado a pensar e sentir, então é real. O corpo experimenta a resposta física em estados psíquicos alternados entre humor “deprimido” e “eufórico”. “Mim deixa”, era quase um pedido de socorro, como se o desejo de ficar sozinho exigisse nova linguagem, uma que desse conta do silencio decorrente e nele a angústia óbvia.

Tentei explicar que nos últimos dias tenho escrito menos, correspondido menos, estado mais vazio de sentido e o mundo dançando mais rápido na minha percepção. Não enviei o que escrevi, ele não ia entender? E de novo optei por não “falar difícil” em nome do entendimento. Pela mesma razão, algumas vezes eu disse “te amo” porque era fácil quando a tradução seria “tenho gostado de você cada dia mais”. Em nome da compreensão, etéreos fios de algodão doce, resumimos a linguagem para que não haja equívocos. “Mim deixa”, foi a gota d’água. Me senti não lido, não ouvido, não visto. Consequentemente, invisível. Que será que ele não via em mim?

Cheguei a perguntar se, aos olhos dele, eu parecia muitas pessoas numa só, se me achava confuso ou aleatório demais, expondo nas redes sociais meu desassossego de samambaia que acordasse depois de vendaval. Tão sólido quanto algodão doce, ele respondeu com ares de tartaruga ninja: sim, eu te amei. E cinco minutos depois veio com esse MIM DEIXA.

Seria fácil catalogar esse erro de português junto aos outros recorrentes. Acontece que qualquer pessoa não é tão fácil assim, ninguém é simples demais. Até uma pedra tem suas fases, camadas. Mesmo um fanático religioso, ou um raso protofascista na extrema de direita, demanda contexto. E por mais que o conhecimento possa libertar induzindo à verdades, saber cansa. Saber ocupa espaço. Saber é sempre uma escolha. Ele sabia muito de mim e eu não coube. Conhecer a História e nela a história de alguém no tecido sociologicamente decifrado nos coloca em perspectiva: quem é quem na fila do pão?

Sem paz e sem razão, terminamos o que parece agora nunca ter começado. Me dei conta só agora de não ter falado nada para ele sobre o dia das mães, de mandar um abraço fraterno para todas as mães. Eu tinha feito até um poema, desisti de enviar pro filho da mãe. Paz de espírito fino fio quase invisível. “Mim deixa” será meu lema até o próximo dia de Santo Antônio.  Mim não quer conversa até entender porque a roda da História deixa fora a engrenagem que sempre mais nos importa.

Baltazar Gonçalves é historiador e escritor membro da Academia Francana de Letras 

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