NOSSAS LETRAS

Uma rapsódia nordestina

Por Sonia Machiavelli | Especial para o GCN/Sampi Franca
| Tempo de leitura: 7 min

A palavra rapsódia pertence ao mundo da literatura. Em sua etimologia guarda o sentido de ‘recitação de poemas’, entendendo-se como tais, na Grécia Antiga onde o termo foi cunhado, relatos líricos comunicados não através da linearidade, mas sim pela via da segmentação, onde trechos evocam uma história mais ampla. Encontram-se nesse nicho escritores tão afastados no tempo, na cultura, no idioma e no espaço como Homero e Mário de Andrade. 

Esse gênero literário se distingue de outros por unir textos de diferentes tipos, criando narrativas que fluem livremente pois nelas o enredo não se submete a uma ordem rígida e os capítulos podem ser lidos de forma independente, espelhando a natureza múltipla de grupos sociais e indivíduos. A linguagem que o caracteriza costuma traduzir o coloquial e o erudito, o local e o regional, o individual e o coletivo.

Foi como uma rapsódia que li o recém-lançado ‘O Sertão de Todas as Coisas’, primeiro livro publicado por Adriana Mendonça, autora que se lança de forma consistente e brilhante no cenário literário de nosso país. Obra inovadora quanto à estrutura, podemos irá-la como um feixe de relatos singulares, sementes de novelas peculiares, ou um só romance, um ‘uniVerso’, como diria Ferreira Gullar, porque a prosa densamente poética da escritora autoriza essa definição.

Duas partes constroem a obra de 199 páginas: o Livro I e o Livro II.

No primeiro, que contém dez textos, a narradora onisciente inicia a narrativa pela descrição da gênese do protagonista, no capítulo cujo título é uma fala retirada do próprio relato: ‘Chica, tomo café e volto com o menino no braço.’ Dessa forma quase abrupta o leitor é introduzido na saga de um recém-nascido doado (ainda antes de nascer) a um vizinho e depois retomado: ‘Toda a família sabia e não esquecia que ele tinha sido doado e depois devolvido pelado (...)’ É em torno dele, na certidão oficial Domingos e no apelido Menga, que as narrativas se erguem e o mundo que cerca a criança, o adolescente, o jovem e o adulto se evidenciam aos poucos, desvelando a existência árida, perigosa e miserável no sertão nordestino. Ali, carcará e cascavel dançam um bailado mórbido do qual resulta ferido o menino que pisará involuntariamente na casca seca da víbora: ‘A fraqueza da cobra frente ao carcará nublou a alvorada da vida de Menga: ele foi o menino do pano amarrado ao pé esquerdo. Um trapo ensanguentado ou purulento esteve atado a ele’.

Descrição vivaz que transforma o leitor em participante sensorial da história graças às habilidades da escritora, essa luta entre ave e réptil alça nível de metáfora, uma das belezas da ficção de Adriana Mendonça. A imagem será retomada. Décadas depois do fato que marcou os primeiros anos de Menga e intitula o segundo capítulo - ‘O menino com pé de pano’- o protagonista dirá: ‘Nas épocas das secas tristes, só um bicho se alegra- as cascavéis- e parecem se multiplicar. Deve ser porque seu predador faz migração atrás de água e elas ficam deitando e rolando no pó, veneno é oposição de água e não a seca. E esse é um bicho que nós conhecemos bem, eu conheci até os ossos(...) Essa lembrança eu tenho bem, embora não identifique exatamente o início. Eu fui saci. Pulei num pé só por anos e anos, brinquei com dor, trabalhei com dor, e quando não aguentava, ficava.’

Além das metáforas de grande potência, dezenas de outras figuras de linguagem marcam o estilo rico da escritora e são empregadas muitas vezes para lembrar, no meio de coisas sugeridas, as oposições não apenas de predador e presa, mas também as de alto e baixo, céu e terra, fome e seca, sede e água, verde e ocre, esperança e desalento, vida e morte numa região onde a ausência de chuvas pode castigar os viventes por anos seguidos.

Nesse ambiente inóspito, do qual parecem se salvar apenas as oiticicas que nunca entregam seu verde porque retêm a todo custo a sua cota de água, a obstinação humana em permanecer na miséria em lugar de partir em busca de algo novo pode levar à extrema penúria, situação que só mesmo a fé religiosa pode explicar, percebe o leitor nas entrelinhas. Construindo um microcosmo de seres humanos carentes do básico, dolorosamente conformados à sua sina, a ficcionista recorta com maestria pequenas e grandes tragédias que sustentam o repertório da narrativa. Ela exemplifica de forma irável a máxima de Stephen King, para quem ‘o pão da escrita é o vocabulário’, porque ‘palavras criam frases; frases criam parágrafos; parágrafos dão sinal de vida e começam a respirar’. Os parágrafos de ‘O Sertão de Todas as Coisas’ oxigenam a história que nascida na imaginação da criadora alcança imediatamente a do leitor.  A propósito, escreve Vanessa Maranha na orelha:  do ponto de vista formal, Adriana demonstra grande habilidade no trabalho da linguagem, na construção do arco dramático e anticlímax. Aspectos trabalhados com expertise, revelando uma autora plenamente madura em seu ofício’.

O Livro II se abre num outro tempo e espaço, sob diferente ponto de vista: a narração é pela via da primeira pessoa: a narradora onisciente se afasta e a autora concede voz ao personagem principal. Menga assume o relato dos cinco episódios finais como se quisesse ele próprio concluir sua biografia, ‘sessenta anos depois’. O tom fica mais denso e melancólico. Após dizer que em algum tempo remoto (o da seca de 1958) havia tomado consciência de si e se sentia capaz de assumir as rédeas de sua própria história, revela que ‘a catarata velha que hoje me embacia a visão é inofensiva, o que me faz sofrer são os olhos da recordação- ocelos da infância carecedores de uma interferência cirúrgica em uma espécie de catarata neonatal. Quem sabe aclarasse o primeiro grande acontecimento da minha vida, o que me contaram mas não me lembro. O que eu busco ficou tão longe...’Há uma queixa sutil nessas palavras; e em outras, onde a realidade incomoda: ’Fiz-me homem sem nunca ter sido criança.’ 

Assim como a narradora cria frases precisas e fortes no Livro I, a exemplo de ‘A humilhação é uma nódoa’, o protagonista agora narrador de si expõe em assertivas palavras conceitos complexos que advêm de reflexões posteriores à sua retirada: ‘A loucura dos pequenos é invigilante’; ‘Eu venho do lugar de todos os nãos’; ‘Surpreenderam-me os sins que recebi na vida’; ‘O sertão cria loucos e comunistas.’

‘O Sertão de Todas as Coisas’ é livro para se ler e reler meditando não apenas sobre as agruras dos habitantes do semiárido nordestino.  Pela natureza poética de sua linguagem, que abriga muitas camadas de sentido, ele convida o leitor a mergulhar em outros sertões que não os geográficos, a interiores onde o clima desértico clama por água fecundante e as tragédias são enfrentadas com estoicismo pungente.

De volta ao termo ‘rapsódia’, que guiou minha leitura, talvez fosse oportuno lembrar que da literatura ele saltou para a música, onde manteve sua essência de variação em torno de tema maior e abrangente. Rapsódias tornaram célebres alguns intérpretes desde o século XIX e ganharam notoriedade no mundo contemporâneo, de Fred Mercuri a George Gershwin, cuja ‘Rhapsody in Blue’, exaltando Manhattan no verão, associou música e cor de forma magnífica.

Depois de percorrer as 199 páginas do livro de Adriana Mendonça e perceber que saio diferente da leitora que o iniciou, por algum tempo detenho meus olhos na capa de Daniela Penedo. Sugestiva pela alusão que a artista faz a uma trama rústica artesanal, ela exibe as cores da caatinga combinadas de maneira altamente estética, conseguindo traduzir as sensações que a escritora captou ao retratar a paisagem do sertão. Ouso então pensar que o romance é uma rapsódia em ocre, cor da terra ressequida, mas com mistura de laranja, a cor quente da vida; de azul, do céu amplo que a todos protege; e de verde, porque afinal oiticicas resistem.

Serviço
O Sertão de todas as coisas
Autora: Adriana Mendonça
Gênero: Romance
Editora: Viseu
Número de páginas: 199
Capa: Daniela Penedo

Sonia Machiavelli é professora, jornalista, escritora; membro da Academia Francana de Letras. 

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