
"Cristo foi um agitador. Ele mexeu com os acomodados, inquietou os poderosos e provocou uma ruptura radical com a lógica do poder"
Eduardo Galeano, escritor uruguaio
Desde que a morte do Papa Francisco foi tornada pública, poucos minutos após acontecer na madrugada da última segunda-feira, 21 de abril (manhã do mesmo dia no Vaticano, em Roma), parte considerável do mundo ficou pesarosa. Os católicos, cerca de 1,4 bilhão de pessoas, particularmente, por terem perdido seu maior líder espiritual.
Mas mesmo para quem não tem no Papa a grande referência religiosa, caso de outro 1 bilhão de pessoas que se declaram cristãs mas não são católicas (como os evangélicos, luteranos, ortodoxos, anglicanos), ou ainda para outros tantos bilhões de muçulmanos, judeus, hindus, budistas, xintoístas e até agnósticos e ateus, a certeza é de que Francisco fará muita falta.
Enquanto se multiplicam as especulações sobre quem será o seu sucessor na longa linha de ocupantes do Trono de Pedro, acumulam-se também análises e balanços sobre seu legado.
Há quem considere que sua voz levantada em favor dos imigrantes, cada vez mais hostilizados, seja o que irá perdurar. Impossível esquecer o que disse no Congresso dos Estados Unidos, em 2015, no primeiro discurso de um Papa em Capitol Hill. “O caminho mais seguro para a paz é o diálogo constante e paciente. Precisamos construir pontes e não muros”, sentenciou, em pleno período do primeiro governo Trump, quando a construção de um muro na fronteira com o México era apresentada como panaceia para controlar a entrada de imigrantes.
Outros apontam seus esforços para incluir mulheres, religiosas ou leigas, em postos de comando da estrutura da Igreja, um precedente importante que, se não resolveu de vez a exclusão feminina das funções de liderança pastoral, contribuiu para reduzir os efeitos dessa incompreensível segregação — mesmo porque sequer dogmática. "É tempo que as mulheres se sintam não hóspedes, mas plenamente partícipes das várias esferas da vida social e eclesial", disse em 2015, durante plenária do Pontifício Conselho de Cultura.
Francisco não ficou só no discurso e nomeou muitas mulheres para postos-chave, como a Irmã Simona Brambilla, como prefeita do Dicastério (equivalente a um Ministério) para os Institutos da Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica; a Irmã Raffaella Petrini, como presidente do Governo do Estado da Cidade do Vaticano; e a leiga sca Di Giovanni, como subsecretária de Assuntos Multilaterais da Secretaria de Estado do Vaticano. Ainda não há mulheres padres, bispas e muito menos cardeais, mas já existem aquelas que mandam neles — ainda que, neste instante, circunscritas a questões istrativas, e não de fé.
Muitos avaliam que sua posição não apenas de compaixão, mas também de aceitação e inclusão dos gays dentro da Igreja seja o grande marco de seu papado. Francisco deixou muito claro o que pensava a respeito já no início de seu papado, em 2013, quando retornava a Roma depois de sua primeira viagem internacional, feita ao Brasil para participar da Jornada Mundial da Juventude. Respondendo a uma pergunta, a bordo do avião, sobre padres gays, foi direto ao ponto: “Se uma pessoa é gay, busca Deus e tem boa vontade, quem sou eu para julgá-la?”.
Em 2020, num movimento ainda mais ousado, defendeu abertamente a ideia do direito de união civil de casais homossexuais. “As pessoas homossexuais têm direito a estar em uma família. São filhos de Deus e têm direito a uma família. O que temos de fazer é uma lei de união civil. Assim, eles estão legalmente protegidos”, afirmou, em declaração para o documentário “sco”. Foi a primeira vez na história que um Papa apoiou publicamente o direito dos gays a constituírem família, inclusive do ponto de vista legal.
Não parou por aí. Em 2023, durante uma entrevista à Associated Press, negou peremptoriamente qualquer tentativa de criminalizar relações homossexuais. “Ser homossexual não é crime. Sim, é pecado, mas também é pecado a falta de caridade com o próximo”, afirmou. Ainda no mesmo ano, publicou o documento “Fiducia Supplicans”, em que expressamente autorizava padres a abençoarem casais gays. “Quando você pede uma bênção, expressa um pedido de ajuda de Deus, uma oração para viver melhor”, disse o Papa. Houve forte reação do clero conservador e de fiéis confortáveis com a “ideia” de que a homossexualidade é uma aberração a ser combatida, mas Francisco se manteve inabalável.
Seus esforços de aproximação com líderes que professam outra fé têm merecido grande reconhecimento. Francisco não se colocou como único porta-voz de Deus, nem como senhor da verdade e, despido dessa armadura, conseguiu dialogar com todo mundo, independentemente do credo — e, inclusive, com quem não acredita em coisa nenhuma.
Foi assim em 2014, quando, durante uma peregrinação à Terra Santa, rezou no Muro das Lamentações, local sagrado para o judaísmo, ao lado do rabino Abraham Skorka e do muçulmano Omar Abboud. Ou em 2019, quando ele e o líder muçulmano Ahmed al-Tayyeb, Grande Imã de Al-Azhar, am o "Documento sobre a Fraternidade Humana para a Paz Mundial e a Convivência Comum", durante encontro em Abu Dhabi. No documento, ambos rechaçam qualquer forma de violência em nome de Deus.
Dois anos depois, em 2021, reuniu-se com o Aiatolá Ali Al-Sistani, na cidade iraquiana de Najaf, e ambos fizeram apelos pela convivência pacífica e respeito mútuo entre as diferentes comunidades religiosas.
Encontrou-se ainda com o Patriarca Cirilo, líder da Igreja Ortodoxa Russa, colocando fim a uma distância de mil anos desde que os ortodoxos se separaram dos apostólicos romanos. Francisco ainda se reuniu com líderes budistas em 2019, quando disse que “temos uma responsabilidade comum pela paz e pela proteção da Criação”, assim como fez também no mesmo ano com lideranças hindus.
É notória ainda sua longa amizade com o jornalista italiano Eugenio Scalfari, com quem manteve encontros por muitos anos para conversas altamente intelectualizadas e respeitosas. Imagine: de um lado o líder da Cristandade, e do outro, um ateu convicto, dialogando sobre o mundo e suas ideias. Francisco e Scalfari protagonizaram momentos assim, respeitando suas diferenças e solidificando a amizade. "Não podemos insistir em uma imposição da verdade religiosa. O diálogo entre fé e razão, entre crentes e não crentes, é essencial para a convivência democrática", disse Francisco depois de um desses encontros.
Não sem razão, muitos apontam seu comportamento verdadeiramente humilde, muito mais próximo de Cristo do que os adotados pelos líderes da moderna Igreja Católica, como o grande trunfo de Francisco. Ele não apenas escolheu o nome de um ícone da vida simples, Francisco de Assis, para ser o seu, como também praticou, nos limites do possível, essa crença na simplicidade. Um dia depois de ser eleito Papa, com as vestes brancas características, foi até o hotel “Casa do Clero”, onde havia se hospedado como cardeal Jorge Bergoglio, para pagar a conta, deixando todos incrédulos.
Na sequência, recusou-se a morar no luxuoso Palácio Apostólico, preferindo residir na Casa Santa Marta, onde ocupava aposentos bastante simples. "Eu preciso viver entre as pessoas. Sozinho, não me sinto bem”, justificou Francisco, que também recusava refeições diferentes para si e comia o mesmo que todo mundo no refeitório da hospedaria.
Abriu mão também das Mercedes blindadas, preferindo carros simples, como um Fiat 500 ou um Ford Focus, para se deslocar pelo Vaticano ou por Roma. “Como eu posso andar de carro blindado enquanto meu povo anda em ônibus lotado?”, questionou. E por aí vai...
Para mim, o grande legado de Francisco não está em nada disso, isoladamente, porque está em tudo isso, com o que significa. Não houve uma única vitória arrebatadora nestes enfrentamentos. Apesar da voz e dos esforços do Papa, os imigrantes seguem marginalizados, as mulheres não podem celebrar missas, os gays não são completamente acolhidos, religiosos ainda acreditam que só a sua fé importa e que os demais estão errados, e o luxo não chegou ao fim para o alto clero.
Mas isso não é uma fraqueza de Francisco — é sua grande virtude. Ele mostrou que é possível manter-se íntegro e coerente mesmo ocupando uma posição tão sensível, e que pequenos gestos e declarações, feitos com inteligência e coragem, são capazes de mover, numa direção melhor, até mesmo estruturas milenares como a Igreja Católica.
O argentino Jorge Mario Bergoglio morreu, na última segunda-feira, 21 de abril, de um AVC, e levou consigo o Papa Francisco — para sempre eternizado na história. Um novo Papa será escolhido nos próximos dias, e o que virá dele ainda é mistério.
Se o eleito mantiver uma parcela das muitas virtudes de Francisco, não só os católicos estarão em boas mãos, mas também o mundo terá um líder capaz de fazer muita diferença nos destinos da humanidade. Num período de tantas trevas e ódio como o que vivemos, desejar que Deus nos ajude com o novo Papa é, para além de questões de fé, um imperativo moral. Precisamos de um “novo” Francisco tão Francisco quanto o que nos deixou.
Corrêa Neves Jr é jornalista, diretor do portal GCN, da rádio Difusora de Franca e CEO da rede Sampi de Portais de Notícias. Este artigo é publicado simultaneamente em toda a rede Sampi, nos portais de Araçatuba (Folha da Região), Bauru (JCNet), Campinas (Sampi Campinas), Franca (GCN), Jundiaí (JJ), Piracicaba (JP) e Vale do Paraíba (OVALE).
Comentários
3 Comentários
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Darsio 04/05/2025A igreja Católica é a instituição mais antiga do mundo. Uma história de não somente acertos, mas muitos erros. Afinal, quantos inocentes não foram cruelmente mortos por simplesmente terem opiniões diferentes a da Igreja? Giordano Bruno, queimado pela fogueira da inquisição por defender que a Terra não era o centro do universo e, tantos outros denunciado por bruxaria. E o papado? Papas envolvidos com prostituição, orgias, luxúria e outros delitos tidos como pecados pela própria Igreja. A mesma Igreja que virou as costas para a escravidão no Brasil. MAS, FRANCISCO, DIFERENTE DESSE LADO PODRE, FOI UM RAIO DE LUZ NA IGREJA CATÓLICA. ELE FOI A BANDEIRA MAIS IMPORTANTE DESSES ÚLTIMOS ANOS CONTRA AS GUERRAS, INCLUSIVE CONTRA O GENOCÍDIO CAUSADO POR ISRAEL EM RELAÇÃO AOS MUÇULMANOS PALESTINOS. MILITOU PELOS POBRES E HUMILDES E DEFENDEU COMO POUCOS, O MEIO AMBIENTE. ATACOU FIRMEMENTE CRIMES COMETIDOS DENTRO DA PRÓPRIA IGREJA. SUA HUMILDADE E PROXIMIDADE COM OS POBRES, FIZERAM COM QUE ELE FOSSE ODIADO PELOS EXTREMISTAS CONSERVADORES QUE O CHAMAVAM DE COMUNISTA, MAS CERTAMENTE DEVE ESTAR NOS BRAÇOS DE CRISTO, POIS ESSA SUA POSTURA REALMENTE COLOCA-SE PERFEITAMENTE COERENTE COM O QUE FOI A VIDA E A OBRA DE JESUS CRISTO. PAPA FRANCISCO ME REPRESENTA!!!
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jaques campos 27/04/2025Concordo em tudo. O papa Francisco foi um farol para os navegantes destes mares bravios do seculo XXI.
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Vivian 27/04/2025Sim, caro jornalista, o Papa Francisco foi uma ponte de espíritos e almas os homens, um profundo seguidor dos ensinamentos do Mestre Jesus, o Papa, o único que, como o Papa Bento XVI já havia concluído, e por isso renunciou do seu mister Papal, seria capaz de reunir e reordenar o rebanho disperso nas veredas do egoísmo e das insensibilidades oportunistas que, como disse o Papa Francisco, entra pelos bolsos. Faço minhas as palavras do preclaro jornalista que nessas retas linhas acendeu as luzes sobre a vida e obra de um Papa que dedicou a sua vida toda aos humildes do mundo.