Falta de remédio para esclerose múltipla no SUS preocupa

O fumarato de dimetila é um medicamento de alto custo usado por pessoas com esclerose múltipla remitente-recorrente (EMRR), a forma mais comum da doença. O remédio é incorporado ao SUS (Sistema Único de Saúde) e recomendado como tratamento de primeira linha para a condição desde 2019. No entanto, pacientes relatam que a droga está em falta na rede pública em diversos estados.
A dispensação é feita em farmácias de medicamentos especializados, sob gestão dos estados. Uma caixa do medicamento pode variar entre R$ 1.200 e R$ 9.000, dependendo do fornecedor e da dosagem.
"O medicamento faz 50% do nosso trabalho de manter a doença estabilizada. Sem ele, surge a possibilidade de novos surtos, que são novas lesões", explica Ana Paula Morais da Silva, presidente da Associação de Pessoas com Esclerose Múltipla (Apemigos).
É um remédio que age quebrando a formação de um grupo de células de defesa relacionadas a doenças autoimunes, explica Guilherme Sciascia do Olival, neurologista e diretor médico da Associação Brasileira de Esclerose Múltipla (ABEM).
"É seguro, com baixos efeitos colaterais, importante para pacientes que apresentam a doença em formas brandas e moderadas e que ainda não atendem aos critérios para usar medicamentos mais potentes", diz o médico.
Do ponto de vista da saúde pública, ele explica que o fumarato de dimetila melhora a qualidade de vida dos pacientes, muitos dos quais mantêm a doença em remissão, sem riscos de efeitos adversos, sem elevar o custo do tratamento e mantendo sua eficácia.
"Não é um medicamento que todos os pacientes devem utilizar. Cerca de 40% dos pacientes têm a forma altamente ativa da doença e ele não tem a potência o suficiente para sustentar essa forma", afirmou.
Tarso Adoni, neurologista e coordenador da residência médica em neurologia do Hospital Sírio-Libanês, explica que a esclerose múltipla é uma doença autoimune do sistema nervoso central, na qual o sistema de defesa da própria pessoa a a atacar estruturas específicas do organismo. Segundo ele, 85% dos pacientes apresentam a forma recorrente-remitente.
"Ela é caracterizada pela ocorrência de surtos, episódios clínicos em que há alterações na visão, na força muscular ou na sensibilidade", diz o médico. "Esses episódios tendem a melhorar espontaneamente, e o principal objetivo do tratamento é justamente evitar que eles voltem a acontecer." Há outra forma da doença, chamada progressiva primária, que é mais rara.
Juliana Teixeira, de 41 anos, recebeu o diagnóstico de esclerose múltipla há 12 anos e está sem tratamento desde o início de abril. Nos primeiros cinco anos de diagnóstico, ela usou o medicamento betainterferona 1a. Com ele, ela teve três falhas terapêuticas, como são chamados os surtos, mesmo estando em tratamento.
Quando quis engravidar da filha, ela parou o tratamento. Mas, assim que a criança nasceu, Juliana teve um surto e o retomou, usando fumarato de dimetila. "Meu médico disse que ele era melhor, mais seguro e de via oral. E realmente ele me deu outra qualidade de vida; nunca mais tive um surto", conta.
A primeira vez que o medicamento faltou na farmácia onde Juliana o retira foi em novembro do ano ado, por um mês e meio. Neste ano, a última vez que conseguiu retirá-lo foi em 1º de março; há quase três meses, ela está sem o tratamento.
"É um pouco assustador, porque, sem a medicação, os surtos podem voltar e a minha qualidade de vida pode piorar", declara. Ela, que hoje trabalha no setor istrativo, pode ter que parar de trabalhar e até de cuidar da filha.
"Me parece que o desabastecimento é em boa parte do Brasil", diz Juliana. "Aqui, em Guarulhos, me disseram que ainda não há previsão para a volta."
A Folha de S.Paulo recebeu resposta de 20 estados e do Distrito Federal sobre a falta do fumarato de dimetila na rede pública. O Espírito Santo, o Mato Grosso do Sul, o Amazonas e Rondônia afirmam ter o medicamento em estoque. O Rio de Janeiro diz que recebeu a medicação na segunda-feira (26).
O estado de São Paulo e o Ceará receberam uma entrega parcial do medicamento. O Rio Grande do Norte, Minas Gerais e Roraima dizem que têm disponível a dose de 120 mg; já a dose de 240 mg está em falta.
Alagoas e Santa Catarina dizem que a entrega está prevista até o final deste mês. Os estados do Paraná, Goiás, Maranhão, Bahia, Rio Grande do Sul, Sergipe, Pará, Pernambuco e o Distrito Federal informam a falta de estoque e reiteram que a aquisição e distribuição do fumarato de dimetila são feitas de forma centralizada pelo Ministério da Saúde.
A maior parte dos estados diz que o Ministério da Saúde atribuiu o atraso no envio do medicamento a dificuldades de aquisição junto ao fabricante. Por sua vez, a pasta informa à Folha de S.Paulo que o atraso na entrega diz respeito apenas à apresentação de 240 mg, mas que iniciou o envio de mais de 637 mil unidades do medicamento na última segunda-feira (26).
Segundo o Ministério da Saúde, 14 estados — incluindo o Pará, Goiás, Pernambuco, Bahia e Sergipe — e também o Distrito Federal já receberam o medicamento. A nota diz que as entregas aos demais estados estão agendadas para a próxima semana, via secretarias estaduais de saúde, que são responsáveis por distribuir aos municípios.
"Para o tratamento da esclerose múltipla, o SUS oferece outras opções terapêuticas, além do fumarato de dimetila, como a betainterferona, a teriflunomida e o acetato de glatirâmer, que estão com estoques regulares em todo o país", afirma.
"Vale ressaltar que a escolha do tratamento cabe ao médico responsável, podendo incluir a migração para alternativas disponíveis, de acordo com o quadro clínico do paciente."
A empresa responsável pela comercialização do Tecfidera (fumarato de dimetila), a Biogen Brasil, não respondeu aos questionamentos feitos pela Folha de S.Paulo até a publicação desta reportagem.
Hoje, onde há desabastecimento, as pessoas que estão conseguindo o remédio é porque receberam uma doação — geralmente, de pessoas que o retiraram nas farmácias especializadas quando estava disponível e não fizeram uso, por algum motivo.
É o caso da designer e estudante de gestão pública Renata Tietböhl Friedl, 25, que conseguiu uma caixa por meio de seu médico. Ela recebeu o diagnóstico de esclerose múltipla em 2020 e só fez o tratamento com o fumarato de dimetila, principalmente por ele não ter um histórico de falta.
Em Brasília, onde Renata mora, o medicamento está em falta há dois meses. Da doação que recebeu, ainda restam para ela 13 comprimidos. "Depois disso, não sei como vou fazer. A gente fica morrendo de medo de ter um surto, ir parar numa cadeira de rodas, ficar surda, cega... Não tem como prever", lamenta.
Com o estresse da situação, ela começou a sentir um formigamento no meio das costas e alega não estar conseguindo dormir direito. Segundo ela, a falta de informação sobre a previsão de quando o medicamento voltará a estar disponível nas farmácias contribui para a ansiedade.
O neurologista Guilherme Sciascia do Olival explica que há riscos reais para o paciente ao ficar sem a medicação, e que isso prejudica a eficácia do tratamento. "Eminentemente, estamos falando no risco de um surto da esclerose múltipla, que é uma inflamação na região do sistema nervoso central", afirma.
De acordo com o médico, essa inflamação causa sintomas neurológicos, a depender da região que ela acomete, havendo risco de paraplegia, tetraplegia, cegueira, entre outros. "Existem surtos muito graves, com desfechos até fatais. Não é comum, mas essa é a gravidade de inflamar o sistema nervoso central."
Por esse motivo, ele reafirma o perigo da falta do medicamento e a importância de prevenir o surto para os pacientes. Sobre o tempo que uma pessoa pode ar sem tomar a medicação antes de haver risco de um surto, Olival diz que não há parâmetros de segurança.
"Não há um número para dizer quanto tempo se pode ficar sem tomar com segurança. O medicamento continua agindo durante um período, mas não há um tempo estabelecido." Desde que o fumarato de dimetila ficou em falta no sistema público, o médico conta que alguns pacientes já tiveram surtos.
O projeto Saúde Pública tem apoio da Umane, associação civil que tem como objetivo auxiliar iniciativas voltadas à promoção da saúde.