ARTIGO

Riquezas do cotidiano


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Dizem existirem os olhos para ver e ouvidos para ouvir. Dizem. Mas há quem veja e não enxergue. E quem ouça sem escutar. Assim – talvez nunca como atualmente – estejamos presenciando o desenvolver-se de um novo ser humano: o autômato ambulante. Ou apenas sentado. E, portanto, com emoções e sentimentos embotados. Olhos sem lágrimas, corações empedernidos, vozes metálicas. E inteligências sequestradas.

A vida, a natureza, no entanto, continuam com sua permanente vitalidade. São artistas que se exibem num palco privilegiado mesmo quando, tolamente, indiferente a plateia. Pois, de há muito, já entenderam: não é possível explicar, a cegos de nascença, as cores do arco-íris. Mas é lamentável não as irar os que, com olhos de ver, não enxergam. Como, pois, esperar que seres humanos tais contemplem as inestimáveis – e, às vezes, tão pequeninas – riquezas do cotidiano?

Há-se que acreditar permaneça ainda, em cada um de nós, a pureza da criança que fomos. Pode estar soterrada por estupidezes humanas de desejar alturas e abismos. Permanecem vivas, no entanto. Em forma de sonhos, de saudade, de esperança e, também, de luto. Pouco ou mal percebemos, mas a realidade é a de sermos conduzidos pelo ado. Somos aquilo que fomos aprendendo ao longo da vida. Com erros e acertos, com conquistas e derrotas. Logo – mesmo que dolorosamente – o grande aprendizado chegar-nos-ia após a dor, o fracasso, o desgosto. Se – quase sempre – tentamos repetir o que nos satisfez, buscamos, também, evitar o que nos magoou. Viver é a grande escola.

Por muito tempo, predominou a certeza quase cínica de pensadores que proclamavam: “O casamento é o túmulo do amor.” E, realmente, pode ser. A causa verdadeira, no entanto, tem outro nome: o hábito. Pois, tudo o que se torna habitual – e essa é marca do cotidiano – conduz, silenciosamente, ao mecanicismo. E máquinas não pensam, não sentem, não se emocionam. Máquinas não têm expectativas, esperanças, desejos. No casamento, o hábito aproxima-se do vício e, então, pessoas podem viciar-se em repetir sempre a mesma coisa, os mesmos gestos, as mesmas reações. E, também – como simples obrigação ou dever – o encontro do amor.

Trata-se do que, há décadas, já se proclamou: o desencanto do mundo. E, por conseguinte, o desencanto da vida. Poderia, porém, ter sido diferente? Seria, ainda, possível encantar-se e encantar o mundo e a vida? Ora, depende de como cada um entender o porquê de estarmos por aqui. Se for como penitência, não tem solução. Mas, em sendo como privilégio, a estultícia completa seria a de não participar dessa aventura singular. E quem tem olhos de ver e ouvidos de ouvir encontrará as riquezas que fazem parte do cotidiano. Vendo-as e ouvindo-as, o novo de cada dia impedirá a monotonia bocejante de hábitos adquiridos.

As mínimas coisas – essas esquecidas em sua importância – têm a história feita, aliás, por um sem número de pessoas que nos antecederam. Quem inventou o garfo e a colher? E a vassoura? De quem a ideia de fazer a água entrar por canos e sair em torneiras? E o papel higiênico? E o bendito sabonete líquido que, existindo, aboliu o irritante outro que escorrega dos dedos caindo no chão? E a pipoca?

O espetáculo é permanente. De luzes e de sombras, de música e de ruídos, de surpresas e de mesmices. Com olhos de ver e ouvidos de ouvir, saber-se-á não haver reprises. Cada dia, é uma “avant première”. A grande novidade, na riqueza do cotidiano, é a de sermos atores e espectadores ao mesmo tempo. E, também, diretores e autores de cada aventura diária.

Cecílio Elias Netto é jornalista e escritor.

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