
Faleceu no último dia 12 de maio, aos 96 anos, o maestro e compositor Ernst Mahle, um dos nomes mais importantes da música erudita do Brasil. Natural da Alemanha e radicado em Piracicaba desde os anos 1950, Mahle dedicou a vida à educação musical e à composição — com mais de dois mil arranjos e obras originais reconhecidos por sua beleza, criatividade e profundidade.
Sua trajetória esteve intimamente ligada à Empem (Escola de Música de Piracicaba), instituição que ajudou a fundar e onde formou gerações de músicos. Mais do que um educador, Mahle foi um artista que viveu a música com intensidade. “Não conheço ninguém que tenha vivido a música tão plenamente”, disse Marcelo Batuíra Losso Pedroso, diretor do Jornal de Piracicaba. Ex-alunos e colegas o lembram com iração e afeto, como o violista Renato Bandel, que relatou uma conversa com o maestro sobre música e espiritualidade: “Na execução ao vivo, o espírito está presente”.
Nesta homenagem, reunimos trechos de duas entrevistas concedidas por Ernst Mahle — uma em 2021 e outra em 2024. Nelas, o maestro fala sobre sua relação com a música, sua inspiração criativa, seu amor pelo ensino e suas reflexões sobre a vida e a arte. É uma forma de permitir que sua voz ecoe mais uma vez.
Como a música entrou em sua vida e quando o senhor percebeu que viveria dessa arte? Sou filho de pai e avô engenheiros. Minha profissão seria, pela ordem natural, que eu também estudasse engenharia. Quando criança, estudei flauta doce, com muita facilidade, aos 8 e 9 anos de idade, numa escola em Stuttgart. Mas aquilo que eu realmente gostava era de fabricar carrinhos elétricos, na garagem de meu pai. A guerra e os bombardeios mudaram muito a nossa vida em Stuttgart, e meu pai resolveu nossa mudança para a Áustria. Muitos colegas meus, que nunca haviam segurado uma arma, tiveram de partir para o front aos 16 anos. Eu só não fui porque tinha facilidade com mecânica e fiquei trabalhando numa fábrica de peças para avião, na fronteira da Áustria com a Alemanha. Terminada a guerra, os ses — que estavam sob tutela da região de Vorarlberg — trouxeram jovens talentosos do Conservatório de Paris para concertos. Fiquei maravilhado. Quis ser pianista. Me esforcei exageradamente e consegui apenas uma irreversível tendinite. Tentei outros instrumentos, mas não quis desistir. Foi graças à improvisação que consegui vaga na classe de composição do professor Nepomuk David, no Conservatório de Stuttgart.
Quando o senhor e sua família chegaram ao Brasil e como foi para o senhor, ainda uma criança, se adaptar ao novo país? Chegamos ao Brasil em 1952. Comecei a estudar com Koellreutter, na recém-fundada Pro Arte de São Paulo. Depois trabalhei muito com os alunos da Escola Pro Arte de Música de Piracicaba. Comecei fazendo arranjos e peças fáceis e acabei compondo cada vez mais. A fundação da Orquestra Infantil da Escola de Música de Piracicaba, em 1955, muito me impulsionou a fazer arranjos para as crianças. Evoluí com elas.
Hoje o senhor é considerado um dos maiores compositores. Como descobriu que gostaria de ser compositor? Minha trajetória como compositor começou com a fundação da Escola de Música. Observei que havia muitas crianças e que elas precisavam de material adequado e interessante para se animar a cantar e tocar. Em 1955, a pianista Maria Dirce Almeida Camargo me escreveu, pedindo peças fáceis para formarmos uma Orquestra Infantil. Escrevi três peças com temas folclóricos, começamos os ensaios em agosto e estreamos em novembro. Foi um sucesso.
Desde qual idade o senhor compõe e quantas obras produzidas o senhor tem? Creio que desde os 22 ou 23 anos. Tenho composições e arranjos para todos os instrumentos: coro, orquestra, ópera, balé. São inúmeras obras. Sempre tenho ideias e pessoas que solicitam algo de mim.
O senhor completou 92 anos este ano (em 2021) e continua produzindo. O que lhe inspira a produzir novas obras? A inspiração e as ideias surgem, e não consigo parar. Tenho de escrevê-las, preciso compor.
Como é sua abordagem criativa ao compor? Há fontes de inspiração ou processos específicos? Para mim, o mais expressivo é ficar com a ideia daquilo que irei fazer e com a inspiração para o trabalho. Quando vou escrever uma nova composição, procuro ser original, mas conhecer bem o instrumento ou conjunto para o qual vou compor. Penso também no público: que a obra deixe felizes os músicos e os ouvintes.
A pandemia da covid-19 influenciou ou tem influenciado em sua criação? De que forma? Fico mais em casa, permaneço em meu estúdio compondo e atendendo a pedidos. Cada vez mais acho que a música ajuda em situações como essa, pois ela nos absorve e anima.
A impossibilidade de participar de apresentações contribuiu para que o senhor produzisse mais obras? Pode ser, pois tenho mais tempo. Não dou aulas, nem estou mais ensaiando ou regendo.
Quando o senhor inicia uma composição, dedica suas obras a alguém? Ao iniciar uma composição, penso no músico que irá tocá-la. Para ex-alunos, lembro da maneira como gostam de tocar. Quando não conheço pessoalmente, mas conheço o estilo, penso nisso também. A inspiração flui e a composição aparece.
O senhor já executou diversas atividades como músico. Hoje, aos 95 anos (em 2024), em qual área se sente mais realizado?
Acho que sou uma mistura de professor, maestro e compositor, tendo realizado bastante nos três setores. Hoje, não consigo mais trabalhar como antes, mas gosto de assistir a concertos, ouvir jovens alunos, muitos dos quais vêm até minha casa para tocar para mim.
Como é ouvir suas composições executadas ao vivo por músicos que o iram? Fico feliz quando ouço dizer que minhas obras deixam contentes os executantes. Fico emocionado quando dizem que procuram se esmerar ao tocá-las. Sinto-me, então, muito feliz.
Como o senhor equilibra inovação e tradição em suas composições? Considero muito importante conhecer e analisar bem as obras dos grandes mestres. Isso ensina muito. Mas também é essencial cultivar um estilo próprio. Tento que minhas obras interessem aos músicos e também ao público.
Acredita que a música deva transmitir sentimentos específicos ou é mais importante criar uma experiência aberta ao ouvinte? Compor sempre é um trabalho muito criativo, e é normal esperar que o ouvinte aprecie aquilo que escrevemos e apresentamos.
Atualmente, a Empem a por dificuldades. Acredita que a Escola de Música poderá voltar a ser o que era antes? Falando francamente, não creio. Até o momento, nada foi realizado nesse particular. As escolas que mais se interessam não contam com facilidades financeiras para “comprar” os prédios da EMP, mesmo com instrumentos de valor, a musicoteca, tudo isso corre o risco de se perder. Será uma pena e um grande desperdício.
O senhor pensa em se aposentar? O que quer dizer aposentar? Se fosse por idade, eu já estaria completamente fora de fazer qualquer obra musical. Vou deixar essa resposta para Deus; continuarei trabalhando enquanto Ele quiser.
Em sua opinião, qual é o maior desafio enfrentado pelos jovens compositores? E que conselho o senhor daria a quem está começando? O maior desafio é seguir seu próprio caminho. Não é questão de ser o mais original de todos, mas de escrever e apresentar a obra da melhor forma possível, para que intérpretes e público possam ficar felizes ao ouvi-la.