Adelino Duarte, da Corta-Mato, fala dos 40 anos da corrida

O engenheiro agrônomo Adelino Augusto Duarte, 71 anos, é um visionário. Há 40 anos, ele, juntamente com outros esportistas, idealizou a corrida Corta-Mato, hoje reconhecidamente uma das mais tradicionais provas de Piracicaba e região. Porém, a Corta-Mato começou modesta, como um evento entre amigos, que se reuniam aos finais de tarde para a prática esportiva na Esalq/USP (Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz). Com o tempo, essa “brincadeira entre amigos” foi ganhando o gosto popular até se consolidar como um programa indispensável para os atletas amadores de Piracicaba.
“Com o correr dos dias, o número de colegas que corriam e se encontravam na escadaria do prédio central da Esalq foi crescendo. Alguém comentou o bem que a atividade de correr vinha fazendo em sua vida, e sugeriu que criássemos uma corrida. Com o envolvimento de todos, o sonho foi ganhando forma. O objetivo era criar uma corrida perene, gratuita, sintética, intuitiva, empática”, explica Duarte, que atualmente é o diretor-geral do evento.
O nome Corta-Mato, explica Duarte, nominava as tradicionais corridas a pé que os portugueses nos trouxeram, que envolvia trajetos com piso diversificados, como trilhas na terra, ruas com asfalto ou pedras. “Era uma homenagem à nossa história e brasilidade, um orgulho para nós”, conta.
Uma das premissas - e talvez um dos pilares para o sucesso da prova – é a gratuidade. Isso é ponto crucial que Duarte não abre mão como um dos pioneiros e responsáveis pelo evento. “Todos têm direito a uma vida confortável, digna, honesta, saudável. E o Corta-Mato quer todos os cidadãos praticando a corrida e a caminhada, não interessa a classe social, a religião, a ideologia. Quem não tem um tênis caro, corre com um mais barato... Ser gratuito é uma das premissas principais do Corta-Mato. Se alguém quiser ajudar com a organização, que tem um custo a cada prova, pode fazer uma colaboração para os gastos.”
O diretor-geral da Corta-Mato diz que se sente extremamente feliz por ver a corrida chegar neste ano à expressiva marca de 40 anos de existência, vencendo muitos obstáculos, como a troca de trajetos e principalmente o período de pandemia, em 2020. “É plenamente fantástico, espetacular, não há palavras. O Corta-Mato está no coração de cada um”. Veja abaixo os principais trechos da entrevista.
Conte-nos como a corrida Corta-Mato começou? Embora a corrida tenha sido formalmente iniciada em abril de 1985, começou a ser gestada bem antes, em torno de 1983. Um grupo de amigos, composto por pessoas com gosto pelas corridas de rua, alguns deles corredores mais experientes, iniciou o Corta-Mato. Eles corriam frequentemente na Esalq/USP, nos finais de tarde, alguns juntos e outros não, pois os ritmos e o preparo físico eram diferentes. Após os treinos, sentavam-se na escadaria em frente ao prédio central do Campus para um bate-papo descontraído.
Quem batizou com esse nome e de onde veio essa inspiração? Com o correr dos dias, o número de colegas que corriam e se encontravam na escadaria do prédio central da Esalq foi crescendo. Alguém comentou o bem que a atividade de correr vinha fazendo em sua vida, e sugeriu que criássemos uma corrida. Com o envolvimento de todos, o sonho foi ganhando forma. O objetivo era criar uma corrida perene, gratuita, sintética, intuitiva, empática – um momento de encantamento, de saúde, de amizade. Assim sendo escolheu-se que todo primeiro domingo do mês, exatamente às 8h, seria dada a largada dessa corrida. O nome Corta-Mato já vinha sendo veiculado no grupo há alguns dias, pois nominava as tradicionais corridas a pé que os portugueses nos trouxeram, que envolvia trajetos com piso diversificados, como trilhas na terra, ruas com asfalto ou pedras. Era uma homenagem à nossa história e brasilidade, um orgulho para nós! Um dos fatos mais marcantes em nossas conversas que veio a definir os objetivos do Corta-Mato foi o caráter espiritual que a prova teria que levar consigo – como correr está ligado a intensa paixão; cada corredor o sabe, entendemos que em cada Corta-Mato o espírito de todos os amantes das corridas a pé estaria ali presente, ao nosso lado, na largada e no trajeto. Era muito divertido quando algum corredor falava – “oba Emil Zatopek, como está você?”. Dias antes da prova sempre alguém perguntava “acho que vai nevar, vamos suspender a prova?” – todos sabíamos que o Corta-Mato era perene, como o clarear do dia – e, mesmo que nenhum corredor ali estivesse em corpo, a alma de nossos heróis corredores, de todos os tempos, não perderia um único. A pandemia, verificada em 2020 a 2022, foi um acontecimento cruel para a sociedade mundial, que afetou também o Corta-Mato. Lá, no trajeto esalqueano, somente os espíritos correram e, nós corredores, substituímos seu lindo percurso por outro, no local em que cada atleta assim pudesse correr com segurança.
A Esalq apoia a corrida cedendo o espaço. Há outro tipo de envolvimento da universidade? A prefeitura do Campus Esalq-USP foi sempre muito gentil e receptiva para a realização da prova, mesmo sem ter ligação formal. A prova é realização da comunidade piracicabana e a Esalq apoia nosso projeto. Mantemos alinhamento permanente com a universidade, pois somos responsáveis pela integridade do ambiente. Podemos chamar isso de parceria, pois usamos os banheiros da universidade, a tomada para nosso sistema de som, e desfrutamos de um local maravilhoso, um verdadeiro privilégio. Somos muito gratos à prefeitura da universidade pelo carinho e empatia para com o Corta-Mato.
Quando começou, o senhor tinha ideia de que a Corta-Mato se tornaria o que é hoje: a corrida mais tradicional da cidade? Não. Mas sabíamos que uma boa semente estava sendo plantada em solo fértil.
Com quantos atletas começou a corrida e quanto, em média, têm hoje? Nas primeiras edições corriam em média 15 atletas, mas em poucos meses o número já chegava ao dobro. Hoje, mercê da divulgação pelas redes sociais o Corta-Mato disparou em número de participantes, chegando em torno de mil atletas nas duas últimas edições.
Os trajetos mudaram muito nestes 40 anos? Sim. O primeiro percurso, de 6,5 km, era praticamente em trilhas, com o até a margem do Rio Piracicaba. Mas era perigoso – o piso era muito irregular, com árvores caídas, pedras, encontro com porcos do mato, cobras e outros inconvenientes. O segundo percurso, também com trilha mais fechada, mas cascalhado, também teve que ser abandonado, em torno de 1995, devido à presença dos carrapatos transmissores da febre maculosa. Por fim escolheu-se um percurso de 7 km que envolve trilha, carreador cascalhado, asfalto e a temida “serrinha”, muito inspirador pela beleza, mas com maior segurança para os atletas, que aram a correr os 7 km. Por pedido de vários corredores, criou-se um percurso menor, de 5 km, mais plano, com asfalto, terra batida e trilhas, com a beleza que só nossa querida Esalq tem.
Para participar do evento, basta se inscrever pela internet. Por que optaram por um evento totalmente gratuito? Correr e andar foram os primeiros esportes do homem. Todos têm direito a uma vida confortável, digna, honesta, saudável. E o Corta-Mato quer todos os cidadãos praticando a corrida e a caminhada, não interessa a classe social, a religião, a ideologia. Quem não tem um tênis caro, corre com um mais barato. Muitos já correram descalços e já fizemos várias vezes “vaquinha” e compramos tênis para alguns que não os tinham. Ser gratuito é uma das premissas principais do Corta-Mato. Se alguém quiser ajudar com a organização, que tem um custo a cada prova, pode fazer uma colaboração para os gastos.
Como foi a época da pandemia? Vocês conseguiram fazer a prova nessa época? Não. Mas não perdemos o contato como corredores do Corta-Mato. Corria, cada qual, onde estivesse, com segurança. Foi um período difícil para o Brasil e o mundo. Em final de 2021, com o apoio do prefeito do Campus, o professor Roberto, o Corta-Mato voltou, de início com muitos cuidados, evitando-se aglomeração dos corredores e pessoas e, já em 2022, voltou ao normal.
Neste ano, a prova completa 40 anos de atividades? Como é o sentimento para o senhor participar deste momento histórico? É plenamente fantástico, espetacular, não há palavras. O Corta-Mato está no coração de cada um – é uma prova muito ligada a emoções, adrenalina, amizade entre atletas. Muitos cortamatenses já se foram, como o senhor Bicheiro, o Alfen Perin, o Gama, o Catalini, entre tantos outros – mas com seus espíritos presentes em cada prova realizada. É estimulante ver aquele grupo de corredores, de todas idades e sexo, a cada prova, com um sorriso no rosto. E ouvir as palavras daqueles que o Corta-Mato mudou a vida para melhor.
Quantas pessoas fundaram a Corta-Mato? Dos que começaram, somente o senhor permanece na ativa? O Corta-Mato foi idealizado por um grupo em torno de 10 pessoas – entre elas Toninho Zanuzzio, Alfen Perin, Miguel Neves, Odair Pelaes Ruiz (“Bule”), senhor Bicheiro (“Portugues”), Emilio Bicudo, Célia Saes, Pretéh, Olavo Grosso, Rubens Braga. Logo depois reforçado pelos corredores Gama, Sturion, Luis Lima, Bode Zé, e tantos outros da velha guarda.
A corrida também apoia causas sociais, como o orgulho autista. Como vocês fazem essas parcerias? Elas surgem de forma espontânea e tem nosso apoio. Incentivamos a saúde, a atitude empática. E a ética. Somos todos irmãos e esperamos um mundo rico, com meritocracia e justiça.
Como o senhor projeta a prova para os próximos anos? A prova está mudando, e vai continuar assim, pensando na excelência. De meu lado espero que mais e mais pessoas tenham a vida transformada para melhor pela prática da corrida. E que a existência do Corta-Mato também seja estímulo permanente para o cultivo da amizade e boas atitudes dentro da sociedade.